Estudou no Instituto Feminino de Educação Padre Anchieta e na Fundação Santo André, onde cursou ciências sociais. fez o mestrado na Universidade Metodista e o doutorado na PUC-SP. Trabalhou nas Delegacias de Ensino de Santo André e S. Bernardo e foi professora em escola pública, na UniFEI, na Esan e, desde 1970, na USCS. |
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Universidade Municipal de São Caetano do Sul, 04 de julho de 2005.
Núcleo de Pesquisas Memórias do ABC
Entrevistadores: Herom Vargas e Danielle Barbosa.
Transcritores: Meyri Pincerato, Marisa Pincerato e Márcio Pincerato.
Pergunta: Por favor, comece falando a data e local de seu nascimento e comente um pouco sobre a sua família e sobre a sua infância.
Resposta:
Nasci em 27 de dezembro de 1938, sou sagitariana, meio homem, meio cavalo, em São Paulo, e sempre vivi em São Paulo. Vim para o ABC a trabalho, no meu primeiro emprego e estou aqui até hoje. Minha infância, meus pais, minha família era de classe média e o sonho dos meus pais era ter uma filha professora. Na época, realmente, os jovens não tinham muita opção. Os homens faziam curso de contabilidade e as mulheres faziam a escola normal. Como eu estudei no Instituto Feminino de Educação Padre Anchieta, era uma escola estadual, muito difícil de entrar, mas depois que a gente ingressava nessa escola não queria mais sair. Entrei lá aos 7 anos e saí já com 19, depois de ter feito o curso de aperfeiçoamento. Passei a minha vida todo lá. Eram meninas só, aquela educação rígida de antigamente. O problema era quando chegava o homem da Coca-Cola. Aí era uma festa.
Pergunta: Em que bairro vocês moravam?
Resposta:
Moramos sempre no Belém, Tatuapé, aquela zona leste de São Paulo, e a escola Padre Anchieta ficava no Brás, perto da Rua do Hipódromo. Era relativamente longe para a época, porque era ônibus, toda aquela dificuldade para a gente se locomover. Antes de eu estudar na Padre Anchieta, fiz o jardim de infância no Colégio Stafford, no Bom Retiro, que era uma escola onde só estudavam judeus, famílias israelitas, etc. Isso me deixou muito traumatizada, porque eu não tinha nada a ver com a nacionalidade das minhas coleguinhas e eu me sentia profundamente discriminada. Eu experimentei o preconceito com 5 anos de idade. Depois que eu fui para a Padre Anchieta, posso dizer que fui muito feliz nessa escola, tenho grandes saudades, recordações.
Pergunta: Quantos filhos seus pais tiveram?
Resposta:
Eu tenho só um irmão. Meu irmão é mais novo que eu dez anos. O nascimento dele foi muito traumatizante para mim. Eu queria pôr ele no lixo, mas não me deixavam. Eu estava acostumada, era a única neta, a única, que era badalada por todos os membros da família. Quando ele chegou, eu me senti perdendo o trono e fiquei muito brava. Eu o pegava, rodava e rodava e depois largava para ver o que acontecia. Era muito ciumenta.
Pergunta: No que seu pai trabalhava?
Resposta:
Meu pai era policial. No tempo ele trabalhou em delegacia de polícia. Ele era extremamente rígido, bravo e autoritário. Então, tive uma educação muito tradicionalista.
Pergunta: E sua mãe?
Resposta:
Minha mãe era dona de casa, nunca trabalhou e só cuidava da família e dos filhos, uma boa cozinheira. Era daquelas mães que não se fazem mais.
Pergunta: Você lembra de brincadeiras de infância
Resposta:
Eu gostava de brincar com os meninos na rua. Eu nunca fui dada a brincadeiras femininas. Nunca gostei de brincar com bonecas, nada disso. Eu me lembro que meu avô me comprou uma boneca de louça e, coitado, comprou a prestação, aquela dificuldade toda, e eu fiquei preocupada, porque a boneca abria e fechava os olhos e eu queria entender aquele mecanismo. Então, logo no primeiro dia, acompanhando o abrir e fechar dos olhos da boneca, para saber como era, eu achei um martelo em casa e martelei a cabeça da boneca para ver como era lá dentro. Meu avô ficou muito bravo, porque uma boneca de louça, uma vez martelada, não tem mais boneca. Mas eu gostava de brincar com os meninos na rua, de pega-pega, correr de patinete. Sempre gostei disso.
Pergunta: Seus pais são de que nacionalidade?
Resposta:
São portugueses. Eu sou de origem portuguesa tanto da parte da minha mãe como da parte do meu pai.
Pergunta: Mas eles não eram portugueses?
Resposta:
Eles não. Só meus avós.
Pergunta: E você foi fazer curso superior?
Resposta:
Eu terminei a escola normal, aí comecei a trabalhar em São Caetano, na Vila Gerti, na Rua Antonieta. Eu era professora de uma escola de emergência, como eles chamavam, como uma substituta, só que eu tinha uma classe fixa o ano todo. Na época eu dava aula numa oficina mecânica que improvisaram para ser uma escola, uma sala de aula, e ficava perto daquele Grupo Escolar Alexandre Grigolli. E lá os professores faziam um teste nos alunos e os mais atrasadinhos, aqueles que no teste do sorvete vinham para a minha escola. Era uma escola isolada. Só que eu não tinha carteira, não tinha mesa, não tinha lousa. Era uma oficina adaptada, mal adaptada. Então, os meus alunos traziam um caixote, que a gente pedia, e uma cadeira. Eles sentavam no caixote e escreviam na cadeira e eu escrevia na parede e apagava com um pano. Depois de um mês de aula veio um repórter e tirou fotografias dos alunos, do ambiente, e saiu uma reportagem de capa no jornal da região dizendo que o ensino em São Caetano era feito a toque de caixa. Literalmente. Eu fiquei aborrecida, mas meu pai achou o máximo que eu tinha saído no jornal.
Pergunta: Você tinha quantos anos?
Resposta:
Tinha 19 anos. Passada uma semana, o Prefeito Massey mandou um caminhão com carteiras, lousa e mesa e aí sim eu ganhei uma escola. Aí a reportagem dizia que eu era uma heroína, que tinha ido de casa em casa buscar os alunos que tinham vontade de aprender. Enfim, fizeram uma reportagem que não era verdadeira.
Pergunta: Nessa época São Caetano tinha muitas escolas de ensino fundamental?
Resposta:
Não. Que eu me lembro, tinha o Externato Santo Antônio, que era uma escola mais elitizada que sempre foi destinada a uma camada mais privilegiada, e depois vieram escolas estaduais de periferia. Meus alunos eram muito pobres, filhos de funcionários da GM, mas a grande maioria de migrantes nordestinos. Eu tinha muita dificuldade para lidar com eles, porque a minha classe era constituída de alunos que já tinham sido reprovados várias vezes. Estavam no primeiro ano com 14 anos, por aí. Uma passagem interessante era que eu tinha muita necessidade de concretizar os ensinamentos, porque eles realmente se limitavam àquela região de São Caetano, na Vila Gerti. E eu, como professora de primeiro ano primário, ensinava matemática, português, história, geografia, a gente cobria todas as áreas do conhecimento. Inclusive eu cortava a unha dos alunos, cortava o cabelo, cuidava deles como mãe. Na época a gente tinha aula inclusive aos sábados. Era de segunda a sábado. Eu me lembro de uma passagem interessante nessa dificuldade de concretizar os ensinamentos, porque eu queria dar uma aula de geografia ensinando como eram montanhas, ilhas, e fiquei pensando como poderia concretizar o ensino de uma ilha, o que é uma ilha? Para quem nunca tinha saído de São Caetano, eles não tinham idéia de mar. Eu trouxe da minha casa uma lata de goiabada e arrumei um torrão de terra e coloquei no meio da lata e enchi de água a lata, tentando mostrar que aquilo era uma ilha, uma porção de terra cercada de água por todos os lados. Na prova eu perguntei o que era uma ilha e um aluno respondeu que era uma lata de goiabada cheia de água com terra dentro. Estava certo, porque foi exatamente isso que eu ensinei.
Pergunta: A senhora era funcionária da Prefeitura?
Resposta:
Não, era do Estado. Eu era professora do Estado, mas havia um acordo entre Prefeitura e Estado. A Prefeitura cedia o espaço e o Estado pagava o salário da professora. Eu não era efetiva ainda, era uma substituta, eu tinha terminado a escola normal, então eu recebia como substituta. Terminado esse período eu acabei ingressando e aí sim me tornei professora efetiva, fui para Mirante do Paranapanema, aquela pontinha do Estado de São Paulo, na divisa com o Mato Grosso e Paraná. Eu fiquei lá um ano e meio numa fazenda. Era uma área de pioneirismo. Eu tomava o trem na Sorocabana, viajava 18 horas de trem, descia em Santo Anastácio e lá eu tomava um ônibus que ia até a cidade, que é essa região de conflitos atualmente. Em Mirante do Paranapanema eu tomava uma Kombi e era mais uma hora, chegava em Marabá Paulista e eu pegava um cavalo e ia até a fazenda. Andava 9 km a cavalo. Tinha de ser a cavalo porque a gente tinha de atravessar um rio, então, para passar pelo rio tinha de ser a cavalo ou então em caminhão de tora. Eu nunca tinha saído de São Paulo, e levei na mala roupas mais bonitas, achando que ia freqüentar o clube da cidade e fui morar na fazenda, ficar nessa fazenda, onde eu morava na casa do administrador, mas meu quarto era isolado, na frente da casa, era chão de terra batida e a casa era de madeira, as pessoas derrubavam a mata e faziam suas casas com aqueles troncos tortos. Quem passava fora via tudo dentro da casa. A minha casa não, era chique, a madeira era bonitinha, mas tinha algumas frestas entre uma tábua e outra. A luz era luzparina. Acendia a lamparina e o vento soprava e apagava a luz. As baratas vinham, batiam no rosto da gente. Era uma coisa horrorosa. O banheiro, o chão era de terra batida e o banho era o banho tcheco. Não tinha chuveiro, era bacia e depois do banho aquilo ficava um lamaçal e o banheiro ficava no meio da fazenda, aquele banheiro clássico de fazenda, com bichos lá dentro, com um telhadinho para você não tomar chuva e a parede batia no cotovelo da gente. De manhã você estava fazendo xixi e o aluno passava, você estava com a cara para fora, porque do cotovelo para cima você estava exposta. O aluno passava e falava: Bom dia, professora. Nunca tinha passado por essa experiência, de ter de cumprimentar alguém no banheiro.
Pergunta: E depois você voltou para São Caetano?
Resposta:
Depois eu vim, transferida, para São Paulo, para dar aula num colégio de freiras, mas como professora do Estado. Dava aula no Educandário Espírito Santo, no Tatuapé. Eu morava lá. Foi uma diferença muito grande, uma mudança radical, porque era um colégio de crianças de um nível alto, de classe social alta. Foi uma mudança que nem eu mesma acreditava. Depois meu marido veio dar aula na Fundação Santo André.
Pergunta: Você já era casada?
Resposta:
Sim. Quando eu ingressei, quando eu fui para Mirante do Paranapanema, eu já era casada e inclusive engravidei nesse período em que eu ficava lá e meu marido aqui, então era um pouco complicada essa separação, você praticamente recém-casada, aquela coisa de acompanhar até a estação ferroviária, acenar o lencinho branco, chorar. Era terrível. Aí eu vim lecionar no Educandário Espírito Santo e meu marido começou a dar aula na Fundação Santo André e foi aqui que a gente acabou mudando para São Bernardo.
Pergunta: Qual a formação dele?
Resposta:
Ele é sociólogo.
Pergunta: Até então você não tinha feito faculdade?
Resposta:
Quando mudei já estava no segundo ano da faculdade, mas vim estudar aqui na Fundação Santo André. Eu sou da primeira turma da Fundação, me formei em 1969. Eu achei que, como a gente já estava se direcionando para morar em São Bernardo, eu achei que era mais adequado estudar aqui mesmo. Mas fiz o meu curso superior já casada, com dois filhos, a mais velha com 4 anos e o menino com 3 anos. Eu me sentia a mãe mais desnaturada do mundo porque estudava de manhã, trabalhava à tarde, dava aula de noite. Eu comecei a dar aula aqui no Alcina Dantas Feijão, de geografia. Quando a minha filha perdeu o primeiro dentinho de leite ninguém viu. Quando eu cheguei em casa ela estava banguelinha. Ninguém sabia que o dentinho dela tinha caído. Eu chorei muito, me senti desnaturada. Mas é assim mesmo, depois a minha filha cresceu e fez a mesma coisa que eu fazia. Eu falava para ela olhar os meus netos. Ela falava que eu era a única que não podia falar nada. Eu estou aqui, cresci do mesmo jeito, saudável.
Pergunta: Como você descreveria a Fundação Santo André? Como eram as áreas de educação?
Resposta:
Quando eu estudei na Fundação a gente estudava em uns galpões, barracões, não sei como a gente pode chamar aquilo, junto da Prefeitura, onde hoje funciona a Prefeitura. Era ali naquele espaço. Eu estudei ali no primeiro ano e no segundo ano a gente foi estudar numa rua, Fláquer, não lembro, onde funciona a UniA.
Pergunta: Senador Fláquer?
Resposta:
Exatamente. Nós passamos para lá no segundo ano. Fizemos naquele prédio. No terceiro ano ou no quarto, a gente mudou para o Sítio Tangará, onde funciona ainda hoje.
Pergunta: Não havia aqueles prédios todos?
Resposta:
Lá construíram depois. Acho que a gente mudou para lá em 1968.
Pergunta: Como era o local?
Resposta:
Era comum a gente descer do carro e ver cobras. Era uma coisa bastante comum. Na época os nossos professores eram todos da USP, de altíssimo nível. Tanto que quando eu concluí a faculdade eu fui convidada para ser assistente do professor Borges, da cadeira de antropologia da USP e eu não aceitei, não sei por quê. Até hoje me pergunto por que não aceitei. Não sei. Eu trabalhei um ano lá como assistente voluntária da cadeira de planejamento com o professor Celso Bueno e comecei a dar aula aqui no IMES.
Pergunta: Em que ano você começou aqui?
Resposta:
Vim para cá em 1970. Eu trabalhava na Delegacia de Ensino de São Bernardo como orientadora de estudos sociais, trabalhando junto das escolas primárias da região e dava aula de geografia no Alcina Dantas Feijão, dava aula na PUC, de planejamento, em São Paulo, e dava aula no IMES, de sociologia. Eu fazia ainda mestrado na USP..
Pergunta: Como era o curso de sociologia no IMES?
Resposta:
No IMES, quando eu comecei a dar aula aqui, eu dava aula para administração e depois eu passei a dar aula também para o curso de ciências sociais. O curso de ciências sociais era muito procurado, a gente estava ainda na época da ditadura, e como era proibido estudar Marx, o pessoal ficava muito curioso e as nossas classes tinham 80 alunos, um pouco mais. Nós tínhamos uma classe pela manhã, matutino, e noturno. Então, tanto administração como ciências sociais e economia funcionavam de manhã e à noite, e as classes de ciências sociais eram muito grandes, com um pessoal politizado, muito interessado em estudar essas teorias políticas.
Pergunta: Eram interessados em quê? Eles tinham alguma relação com a industrialização da região ou era mais pela política?
Resposta:
Era mais política. Inclusive quando começou o curso de ciências sociais aqui no IMES, as classes, no primeiro ano a escola era gratuita, o pessoal que entrou no primeiro ano fez todo o curso gratuitamente e as classes eram pequenas, com 40 alunos. Depois mudou o sistema e já no segundo ano os alunos começaram a pagar e as classes foram crescendo. E quando eu peguei ciências sociais, acho que em 1972, as classes eram muito grandes, mas era um pessoal preocupado com a política. Depois foi havendo uma mudança. Os alunos de ciências sociais começaram a perceber que eles precisavam trabalhar e começaram a se interessar pelo magistério. Só que o nosso curso já era um curso criado aos moldes da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, então era um curso de bacharelado, não de licenciatura, e logo eles não podiam dar aula. Aí a gente introduziu disciplinas de didática, etc., para ver se a gente conseguia dar dois diplomas, de licenciatura e de bacharel em ciências sociais. Só que o Conselho Estadual de Educação não permitiu. Mesmo com as disciplinas, como a gente não era faculdade de filosofia, não somos, então não adiantava nada eles estudarem didática, metodologia, porque no magistério eles entravam para dar aula em caráter precário, dando aula de história e geografia, mas em caráter precário. Então, eles ficavam em desvantagem com os alunos da Fundação, por exemplo. Aí eles saíam do IMES e iam fazer um ano na Fundação, mas acabavam fazendo outras disciplinas, não didática, porque didática e metodologia eles já tinham tido aqui. Faziam alguma outra disciplina, porque o currículo nunca é exatamente igual, então faziam adaptação, que não me lembro exatamente em quê. E eles conseguiam o segundo diploma, de ciências sociais mais licenciatura, para poder lecionar. Depois é que a gente, como nós não conseguimos mais dar esse caráter de licenciatura ao curso, preocupados com o mercado de trabalho, isso partiu de nós, não dos alunos, esse enfoque voltado para a industrialização, mas parece que isso não agradou, não era esse o objetivo do alunato, não era isso o que eles queriam, não estavam preocupados com a industrialização, e aí a gente começou a perder alunos, porque lógico, quem fazia Fundação fazia em quatro anos e quem fazia IMES acabava fazendo em cinco, porque tinha o quinto ano para ser feito lá. Aí começou a diminuir a procura e também a gente entrou no período da democracia, entre aspas, mas houve uma perda de interesse pelo aspecto político e o curso acabou fechando porque as últimas turmas eram pequenas.
Pergunta: E no curso de administração havia filosofia?
Resposta:
Não. O curso de administração tinha 10% de moças e a grande maioria era constituída por rapazes. Tanto que quando comecei a dar aula aqui, eu tinha uns 27 anos, era muito desagradável, porque eles assobiavam para a gente. Eu me achei na obrigação de mexer no cabelo, pintava de branco para ver se os alunos se mantinham mais respeitosos. A grande maioria era constituída por rapazes. Aqui no IMES, durante muitos anos, eu era a única mulher dando aulas. Depois de uns cinco anos que começaram a chegar professoras.
Pergunta: E a sua relação, como mulher, com os professores?
Resposta:
Era interessante. Quando eu assumi a chefia de departamento, o jornalzinho do IMES publicou "Mulher assume chefia de departamento". Foi bem legal. Nunca vi falarem que homem assume a chefia.
Pergunta: E o que você se lembra dos primeiros alunos e dos professores, da expectativa deles, o que eles esperavam da época?
Resposta:
Houve uma época em que eles eram muito participativos. Eu me lembro de uma aluna de ciências sociais, a Míriam, que ganhou as eleições para presidente do Diretório Acadêmico. Foi um momento bastante interessante, porque queiram ou não, há um certo preconceito contra a atuação da mulher. Ainda há hoje, mas lá atrás esse preconceito era muito maior. Então, o pessoal ficou meio surpreso com a vitória dela. Aí ela começou a dar uma organizada. Se não me enganou foi ela que começou com o grupo de teatro aqui. Eles faziam muitos eventos musicais, trazendo artistas de renome aos sábados, para cantar.
Pergunta: Você se lembra de alguns que vieram?
Resposta:
Não sei se Toquinho, mas alguns nomes famosos. Eles organizavam semanas de ciências sociais. Fernando Henrique uma vez veio fazer uma palestra aqui, ele foi barrado.
Pergunta: Por quê?
Resposta:
Porque era um momento crítico, politicamente falando, e ele fazia parte da ala esquerdista, então era muito complicado deixar Fernando Henrique fazer uma palestra aqui. Ele foi impedido de entrar. Era um momento difícil. A gente tinha muitos alunos que eram membros do SNI, que estavam caracterizados como alunos, mas de fato não eram alunos e a gente, mais ou menos sabia. Não tínhamos certeza, mas era comum você terminar uma aula fazendo...
Pergunta: (Inaudível)
Resposta:
Era um programa mais na linha norte-americana, mais conceitual, teórico, mas sem envolvimento ideológico. Naquele momento eu não me atrevia a falar em Marx. Era um momento em que eu fazia mestrado na USP, eu fui aluna do Verford, eu era orientanda do Leôncio Martins Rodrigues, e a gente tinha de ler livros que a gente não conseguia encontrar no Brasil. Tinha de importar. Conseguia com aqueles rapazes que vendiam, porque você não tinha como conseguir. Paulo Freire a gente lia em espanhol. Não tinha em português. Eu me lembro que eu estudava sempre na biblioteca da USP sempre atrás de colunas, observando se não tinha ninguém olhando para mim, vendo o que eu estava lendo. Era muito complicado. Eu estava no meio de um curso do Rui Coelho, que tinha dado abrigo para Florestan Fernandes, na época, e ele foi preso no meio do curso. A gente chegou um dia e cadê o Rui? O Rui foi preso. Era assim muito difícil e eu não me atrevia a falar sobre esses assuntos com os meus alunos no IMES. E era isso que causava uma certa insatisfação, porque eles vinham realmente interessados em conhecer essa parte, só que era muito complicado. Eu lembro que dei uma pesquisa com tema aberto, porque pesquisa você tem de fazer naquilo que você gosta, que tem interesse, e um grupo de alunos resolveu fazer uma pesquisa sobre a burocracia militar. Queriam que eu me responsabilizasse, pelo resto da vida, por aquele grupo de alunos e queriam segurar meu RG, etc., no batalhão. Eu falei para mudarem de tema, vamos fazer burocracia bancária, em qualquer organização, menos no exército. A gente vivia uma constante aflição, porque você não sabe o que vai acontecer daqui a dois minutos. Eu era uma filha rebelde e meu pai era policial e eu fui ser socióloga. E sociólogo é sinônimo de subversão. Eu tive muitas colegas que foram presas, mas eu sempre consegui me safar, eu sempre saía na hora certa.
Pergunta: E nesse assunto ainda, a posição da direção do IMES, como era?
Resposta:
Era normal.
Pergunta: Era um cuidado geral? (Inaudível)
Resposta:
Era de todos.
Pergunta: E os programas de ensino eram como?
Resposta:
Todos os professores de sociologia, porque a gente trocava idéias e todos os programas de sociologia eram semelhantes.
Pergunta: Quem eram os professores de sociologia?
Resposta:
Nós tínhamos um professor que era da aeronáutica, mas não me lembro o nome dele. Ele morava no interior. Nós tínhamos um outro professor que era um ex-padre jesuíta, Mário Vislandi e o outro professor era o meu marido. Depois veio o Gilberto, que está conosco ainda. Mas a gente não se atrevia a fugir da linha porque os riscos eram muito grandes.
Pergunta: E já que os alunos eram tão politizados, tinha essa coisa do movimento estudantil, eles se mobilizavam para brigar por um ideal?
Resposta:
Aqui no IMES acho que nós não tivemos muito esse problema. Os alunos eram politizados, de vez em quanto havia algum atrito com determinado professor, como tiveram uma vez com um professor de história deles, Paulo Natanael, não sei se vocês conhecem, que é uma pessoa que foi muito importante na época da ditadura militar. Os alunos do IMES nunca foram tão rebeldes. Não me lembro de ter nada.
Pergunta: E já havia o Diretório Acadêmico?
Resposta:
O Diretório Acadêmico começou em agosto. Desculpe. O IMES começou em agosto e o diretório começou em outubro. Então, foi logo em seguida. E sempre houve disputa pela presidência do diretório, mas parece bastava a Atlética e o grupo de teatro. No IMES a gente não tem essa tradição de rebeldia, de grandes manifestações políticas.
Pergunta: E como foi o curso vespertino e que não tem mais?
Resposta:
Nós tínhamos o curso matutino lá no começo, só que era problemático, porque os alunos tinham de trabalhar e a gente tinha de condicionar o horário das aulas ao horário de trabalho deles. As aulas terminavam às onze horas e meia e quando eram dez para as onze a turma já estava querendo ir embora porque tinha de pegar o trem e não podiam perder. Aí chegamos à conclusão que esse curso matutino não dava certo e era melhor ser vespertino. Então, no matutino eles iam embora mais cedo e no vespertino eles chegavam atrasados. Quer dizer, não adiantou nada. O curso começava às cinco horas e vinte e eles chegavam às seis horas, seis e pouco, e sempre perdiam alguma aula, ou a última ou a primeira. Parece que o curso vespertino começou a dar problemas, porque dia sim, dia não ele avançava no horário do período noturno e o noturno tinha de começar mais tarde. Então, hipoteticamente, de segunda, quarta e sexta o vespertino tinha quatro aulas e o noturno tinha três e nos outros dias era o contrário, o vespertino tinha três e o noturno tinha quatro. Um curso atropelava o outro. Aí resolveram volta a funcionar de manhã. Mas também não dá muito certo.
Pergunta: O IMES sempre foi naquele prédio do meio?
Resposta:
No Prédio B. Ali que era o nosso prédio, inicialmente.
Pergunta: A diretoria e a sala dos professores era para baixo?
Resposta:
Sim. Depois passou a ser na última sala do corredor, mas por um bom tempo a gente teve só esse prédio, que bastava. Não sei se bastava, mas atendia.
Pergunta: Seu marido também trabalhava aqui?
Resposta:
Na verdade meu marido foi fundador do IMES. Ele fez o curso de ciências sociais, porque ele era sociólogo formado na Escola de Sociologia e Política e copiou o modelo dessa escola e implantou o modelo no IMES. Na época um ex-professor dele fazia parte do Conselho Estadual de Educação e deu muito apoio para que o curso funcionasse naqueles moldes, porque era um curso diferente. Não era como curso da USP, que era um curso de licenciatura. A gente tinha um enfoque diferente.
Pergunta: (Inaudível)
Resposta:
Na verdade a gente... Meu marido foi procurado pelo Braido na época para montar uma escola superior e ele tinha como slogan que educação não era problema no município, ou alguma coisa parecida com isso, e que o município ia atender plenamente a área educacional. Ele nos procurou para criar a faculdade e na época foi criado o curso de economia e também criado o curso de ciências sociais. Eram os dois cursos. Ele cedeu provisoriamente uma escola primária ali na Visconde de Inhaúma, perto da Fundação das Artes, enquanto aquele prédio onde hoje é a Fundação das Artes estava sendo construído para ser o IMES.
Pergunta: Ia ser separada a escola de economia da de ciências sociais?
Resposta:
Não. Juntas. E se chamava Faculdade de Ciências Econômicas, Políticas e Sociais. Estava funcionando nesse colégio, nessa escola estadual, e depois passaria para aquele prédio que depois foi ser usado pela escola Alcina Dantas Feijão. Aqui estava sendo construído para a ESAN. Havia um acordo entre a Fundação de Ciências Aplicadas e a Prefeitura para a construção de um prédio. Então, o Braido daria este prédio e a Fundação de Ciências Aplicadas colocaria a ESAN funcionando aqui. Nesse ínterim, houve um problema com os alunos da ESAN de São Caetano com relação à escola, eles estavam insatisfeitos com a administração, com o corpo docente. Não sei muito bem qual a insatisfação deles, mas o fato é que a partir daí eles foram incorporados à Faculdade de Ciências Econômicas, Políticas e Sociais e o nome foi modificado, incluindo a administração; ficou Instituto Municipal de Ensino Superior e ao invés deste prédio ficar para a ESAN, ficou para o IMES e o outro prédio tomou um destino diferente.
Pergunta: E a história da estátua, você sabe alguma coisa?
Resposta:
Sei que foi um artista de São Caetano que fez aquela estátua, mas o objetivo dele era levar a estátua a Roma, mas parece que ia ficar muito caro o transporte e parece que ele acabou doando a estátua para a Prefeitura e a Prefeitura acabou colocando o Pedrão aqui na frente do IMES. Ficou tradicional o Pedrão. Mas originalmente, esse Pedrão foi feito para ir para Roma, era um presente para o Papa.
Pergunta: As faculdades mais antigas da região foram criadas no final dos anos 60 e começo dos anos 70. A que você atribuiria isso? Você começou no IMES em 1968. Como começou?
Resposta:
Não sei explicar, mas você tem razão. Não sei a causa verdadeira, mas a gente percebe que sempre houve uma certa competição entre os municípios. Quando um faz uma coisa o outro também quer fazer, superar. A Faculdade de Direito de São Bernardo também é dessa época. Aí também foi criada a FEI, a ESAN veio em 1965, a Faculdade de Filosofia de São Bernardo, a Senador Fláquer. Acho que foi isso mesmo.
Pergunta: As pessoas que trabalhavam nas indústrias, fossem elas de São Bernardo, São Caetano, eram alunas do IMES ou da Fundação Santo André?
Resposta:
Não sei te dizer, porque eu estudei de manhã na Fundação e convivia mais com os alunos do período matutino. Acho que na época nem havia curso noturno na Fundação, pelo menos na área de filosofia, porque era só de manhã. À noite que tinha economia, se não me engano. O pessoal que estudava pela manhã não era empregado de empresas. Aqui no IMES a gente sempre teve muitos alunos das empresas da região. E, assim como na ESAN, a grande maioria dos nossos alunos era da Volkswagen, Mercedes, e aqui era mais da GM. Eu acho que há um certo direcionamento da indústria local para a escola mais próxima. Mas isso acontece mais nos cursos de administração, eu acredito. Os alunos do curso de filosofia têm outro perfil.
Pergunta: (Inaudível)
Resposta:
O que tenho são datas anotadas, da fundação, do início do IMES e do diretório acadêmico, mas nada de excepcional, porque não sou boa para guardar datas.
Pergunta: O seu mestrado foi sobre o quê?
Resposta:
Inicialmente ingressei na USP para fazer na área de ciências sociais, porque eu queria trabalhar os migrantes nordestinos como mão-de-obra sem qualificação da indústria da construção civil. Eu fiquei três meses na vala da estação São Bento do metrô e entrevistei 90 trabalhadores, todos sem qualificação, todos migrantes. Era a época da evolução do urbanismo em São Paulo e faltava muita mão-de-obra e a Camargo Correia, que era a responsável pela construção do metrô, ia buscar, persuadir o pessoal em Minas, etc. Eu fiz essa entrevista longa, que durava uma hora e meia, com os trabalhadores. Eu tinha até dificuldade em saber o que eu queria e os alunos de ciências sociais do IMES, do quarto ano, na época eu dava aula no quarto ano, me ajudaram muito na coleta de dados. Foram muito legais comigo. Só que na hora da tabulação, eu fiz uma tabulação simples, eu não cruzei nada com nada, e era uma época que não tinha esses softwares que hoje resolvem o problema da gente que atua na área de humanas. O fato é que não consegui concluir a minha pesquisa, não consegui analisar os dados, enfim, desisti. Depois de quatro anos resolvi não estudar mais, só voltar a estudar quando não tiver mais nada para fazer na vida e engavetei a minha dissertação. Abandonei e fiquei profundamente magoada e aborrecida, me sentindo a mais idiota de todas. Depois de um tempo eu assumi a direção da ESAN, junto a FEI de São Bernardo, começou aquele momento em que o MEC estava exigindo que todos tivessem mestrado, eu consegui um convênio com a Metodista, eles me deram uma bolsa de 30% para os nossos professores, e a Fundação, que era a mantenedora da ESAN, deu os 70% e estabeleceu um prazo de dois anos e meio para todo mundo concluir o mestrado. Aí eu fui fazer o mestrado em administração e trabalhei os valores da cultura, porque a ESAN é uma escola concessional e eu trabalhei os valores inacianos dentro da Companhia de Jesus. Eu fui trabalhar os valores inacianos dentro da cultura da ESAN. Eu gostei da brincadeira e não parei mais.
Pergunta: Esses alunos que estudavam nesse período no IMES, nesse período que você lecionou, tinha que idade?
Resposta:
Eram mais velhos. Eu não posso falar em idade porque eles estão todos aí.
Pergunta: Não eram alunos da faixa etária usual?
Resposta:
Não eram. E a grande maioria dos nossos professores hoje foram alunos nossos. Eu me sinto muito à vontade dentro da escola, porque começando com o pró-reitor, que foi meu aluno. Quando eu digo que fui professora do Puga, os alunos falam que eu sou do tempo de Matusalém. Realmente os alunos tinham idade na faixa de uns 30 anos, alguns até mais. Já eram pessoas que ocupavam cargos de mando nas organizações. Era um alunato mais fácil de se trabalhar, porque eles sabiam o que queriam e tinham mais disciplina, mais dedicação.
Pergunta: E mais velhos que você?
Resposta:
Alguns. Eu tive um aluno que era medico de Santo André, um médico famoso e que fez administração aqui conosco, o Hitide Campos, e ele já era um senhor. Alguns advogados. Era um pessoal mais maduro.
Pergunta: Como trabalhavam os professores em termos didáticos e com material? Os alunos compravam os livros?
Resposta:
Era um tempo diferente. A gente conseguia que eles fizessem leituras de capítulos de livros. Era uma época em que usavam menos apostilas, também não tinha internet para ficar trocando coisas nem ficar pescando textos. Eles compravam livros e compravam mais do que hoje. Se não compravam, usavam da biblioteca. Mas me lembro que pedia para os meus alunos lerem "A Imaginação Sociológica" de Wright Mills. Imagina se eu disser uma coisa dessas na classe hoje, vou ser espancada, com certeza.
Pergunta: (Inaudível)
Resposta:
Acho que aqui no IMES a gente sempre teve bastante apoio nessa parte de biblioteca. Nunca tive dificuldade para conseguir exemplares. E os alunos se viram. De repente se cotizam para comprar um livro.
Pergunta: Xerox não era popular?
Resposta:
Não era. Hoje a coisa está diferente.
Pergunta: Normalmente a gente encerra a entrevista pedindo para o depoente deixar uma mensagem, uma colocação. Gostaria que você comentasse se trabalhar como professora no IMES, durante todos esses anos, é um diferencial, e se tem uma situação diferente, principalmente para a mulher?
Resposta:
Eu acho que o professor já teve um prestígio maior do que ele tem hoje, socialmente falando. Parece que ser professor universitário era uma coisa que dava muito mais prestígio ao profissional do que atualmente. Mas eu vejo o IMES, para mim pessoalmente, como uma instituição que sempre me deu muito amparo. Eu sempre me senti muito apoiada aqui dentro. Inclusive trabalhei 28 anos na FEI, me dediquei muito àquela instituição e quando perdi meu lugar lá tinha apenas duas aulas no IMES, e assim que o pessoal soube que eu estava disponível no mercado, aumentaram o meu número de aulas. Eu sempre fui bem recebida por todos. Não tenho nenhuma queixa a fazer do IMES, muito pelo contrário, sempre fui muito bem acolhida. E hoje, mais do que nunca, como eu digo, não posso nem enumerar porque tenho medo de esquecer alguém, mas a grande maioria dos professores de administração, de sociologia todos, foram meus alunos.
Pergunta: Como você se sente?
Resposta:
Eu me sinto muito orgulhosa, porque muitos deles concluíram o doutorado antes de mim. Eu vi esse pessoal crescer. Alguns são bem falados e circulados, os alunos falam que professor fulano é muito bom, e eu falo que é porque ele foi meu aluno, aprendeu comigo. Isso para mim é muito prazeroso, eu me sinto muito orgulhosa de tê-los como meus alunos, pessoas que se saíram bem profissionalmente, profissionais de sucesso. Isso me dá muito prazer e muito orgulho e não posso parar de trabalhar. Digo aos meus alunos que eles vão ter de me agüentar de pastor alemão e bengala branca, porque o magistério é uma atividade enriquecedora, apesar das dificuldades de hoje, em lidar com a meninada, mas ainda assim acho que eles fazem parte integrante da minha vida e acho que se parar de lecionar eu morro. É como se tivessem roubado meu brinquedo.